Se você chegou a este post, muito provavelmente, sabe de alguém que sofre de depressão ou convive com uma vítima dela. Talvez ela esteja mais próxima ainda, e seja a sombra permanente que nubla os seus dias e desbota o mundo. A depressão é como o oxigênio ou a internet. Está em toda a parte. Não faz distinção de gênero, classe social, religião, idade, geografia. Não é, como muitos pensam, um mal moderno, recente. E embora seja relativamente fácil de diagnosticar, tratá-la é bem mais complicado.
É raro encontrarmos alguém que não tenha sido tocado por ela. Mesmo que à distância, de forma colateral. E mesmo assim, com ela tão presente em nossa vida, desprezamos seu poder e seu alcance. Como se fosse apenas tristeza, irritação, prostração, melancolia, cansaço, fraqueza…
Muito tardiamente conheci Andrew Solomon e seu O Demônio do Meio-Dia. O livro foi lançado há quase 20 anos, venceu o National Book Award e quase levou o Pulitzer em 2000. Foi eleito pelo Times como um dos 100 melhores livros daquela década e foi publicado em 24 línguas. Mesmo assim, eu ainda não havia tropeçado nele e me assombrado com a sua impressionante voz. Pois fiz isso na última semana e estou arrebatado. Já é o livro mais forte e pulsante que li no ano, e existem tantas razões para isso!
Solomon é um depressivo há décadas e nos oferece o mais franco e aprofundado relato sobre a doença. Escancara sua vida, seus fantasmas, seus surtos e alguns dos sentimentos mais secretos para narrar a depressão a partir de sua luta particular. Se fosse isso, já seria corajoso e importante, mas ele vai além. Entrevista dezenas de pessoas e costura suas experiências com os tratamentos clínicos e terapêuticos mais diversos, e passa um pente-fino nos principais estudos científicos internacionais na Medicina, Psicologia, Antropologia e Sociologia. Mergulha na misteriosa química dos remédios e nos efeitos variados que produzem. Rasga a história e a geografia, desfazendo uma série de mal entendidos comuns. Prospecta o futuro. E desbrava os terrenos mais insondáveis da esperança por uma cura.
O que temos, então, é um tratado monumental da depressão, talvez sua anatomia mais detalhada. Sensível e respeitoso, Solomon trafega entre uma multidão zumbi, ele mesmo em transe. E nos faz entender – muito obrigado por isso! – a delicadeza, a complexidade e a urgência de compreendermos este mal, que não tem hora para se manifestar, nem motivo para existir.
Em muitos momentos, é dilacerante conhecer o drama de famílias inteiras tentando conviver com pessoas depressivas. Em outros, é devastador conhecer o que isso provoca na vida, no corpo e na alma de quem é assombrado por este demônio do meio-dia. É tanto sofrimento que a leitura das mais de 580 páginas parece nunca acabar, embora Solomon escreva de forma envolvente e brilhante. Assim, o homem extrai poesia de cada (mau) sentimento, ao mesmo tempo que nos enche de fé na possibilidade de vitória.
Seu relato poderia ser um conjunto poderoso de gatilhos emocionais para os acometidos pela depressão. Mas quem mais poderia descrever as trevas se não quem nelas vive? A sua honestidade coloca a nossa coluna ereta e endireita o nosso olhar, permitindo que a gente veja além. Ele escreve muitíssimo bem, e a tradução da Myriam Campello me pareceu impecável.
Eu aprendi muito em cada página. Muito. E sofri com Solomon e seus muitos semelhantes. Torci para que restaurassem suas forças e que não desistissem de lutar. Chorei com despedidas e com retomadas corajosas do leme da vida. Eu me perguntava porque estava tão tocado por aquilo tudo, e uma resposta fragmentada e provisória martelava a minha cabeça, ricocheteando com outra pergunta: como não se emocionar e se envolver quando a matéria da história é a própria matéria de nossa frágil humanidade?
No epílogo escrito para a versão brasileira, Solomon repete o retorno de diversos leitores seus. Para muitos, O Demônio da Meia-Noite mudou suas vidas. Para alguns, permitiu reencontrar razões para não abandonar a vida. Bem, talvez este livro não transforme a sua vida, mas tenho certeza de que ele vai mudar a sua perspectiva sobre a depressão. Isso já é uma galáxia…