No final da tarde, fechei a porta da sala com a esperança de que voltaria ao trabalho na semana seguinte. Tanto é que deixei um vaso de flores que havia ganhado de presente. Eu nunca mais resgataria o vaso porque as plantas morreram em poucas semanas e eu só voltaria à sala muitos meses depois.
Hoje faz exatamente cinco anos que isso aconteceu, e a pandemia atravessou as nossas vidas de uma maneira única. Como muita gente, perdi pessoas queridas, adoeci, vivi confinado e me emocionei quando tomei a primeira dose de vacina. Como pouca gente, mantive o emprego, nunca deixei de receber salário, pude conviver com minha mulher e filho numa casa segura e ampla, e nada me faltou. Esses privilégios me ajudaram a seguir adiante, e eu me afundei no trabalho. Todas as manhãs, de segunda a sexta, despachava com o secretário e a subcoordenadora da pós-graduação que eu dirigia. Fazia turnos de 12 horas para dar conta das aulas a distância, da gestão, de orientações de teses, de pesquisas que me recusei a paralisar. Também me preocupava com colegas de trabalho e com alunos, e ligava para um ou outro para tentar amenizar algo que eu não tinha a menor ideia de como lidar.
E me afundei no trabalho não porque era contra um lockdown ou porque era um louco produtivista. Me refugiei no trabalho como se pudesse cancelar a pandemia, anular as inaceitáveis mortes e soterrar todo desespero. Baixei a cabeça e segui olhando os próprios passos como se pudesse ignorar a tempestade. Não deu, sabemos todos, mas foi minha maneira de viver. Isso não evitou que eu fizesse como você que me lê agora: chorei escondido, temi pelo pior e fiquei com a boca seca, sem palavras de alento.
Armazenei minhas emoções em potes e guardei num porão qualquer. Confesso que deixei poucas memórias desse tempo à mostra . E por anos resolvi não mais pensar na pandemia e no que ela fez de nós. Penso mais agora. Desço de vez em quando no porão para abrir um pote ou outro. De alguma forma, sobrevivi e sou muito afortunado por isso. Vivi ligeiramente diferente nos últimos cinco anos, e talvez libertar as memórias e emoções me possa mudar mais ainda. Foi autodefesa e algum egoísmo, mas eu não tinha um plano quando o vírus se espalhou. Quem tinha?
Não tenho medo de uma nova pandemia, e é estatisticamente muito provável que novas aconteçam nas próximas décadas. Tenho medo é que eu não tenha aprendido pouco com a Covid-19, e que o tempo faça dissolver tudo o que passamos. Essas linhas são para me lembrar e não me deixar esquecer. Que possamos ser dignos de viver esse tempo extra.
Texto maravilhoso, maestro RC!!! Abração de sucuri, mano véio!!!
Samuca