Guia literário para entender as redes sociais (e avaliar a permanência nelas)

Um dos assuntos mais efervescentes sobre tecnologia no momento é a regulação das plataformas digitais. Em linhas gerais, sociedades e governos têm sinalizado que as empresas que estão cada vez mais onipresentes em nossas vidas precisam de limites. Como elas devem ser responsabilizadas pelos efeitos que geram? Quem deve fiscalizar isso? Como podemos fazer isso sem prejudicar direitos, liberdades, criatividade e inovação?

O parlamento brasileiro está prestes a votar o projeto de Lei sobre Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet (PL 2630), também chamado de PL das Fake News. Se sua cabeça está confusa com o tema, um bom atalho é este aqui e aqui tem outro. E se você quiser saber mais sobre a coisa, eu preparei um pequeno manual de sobrevivência no assunto com 30 sugestões de livros. Vou chamar de Guia Literário para Entender as Redes Sociais (e Avaliar a Permanência Nelas). É uma lista pessoal, composta apenas por livros que li e recomendo. A maior parte deles está disponível em português (links de compra nos títulos), e a lista não segue uma ordem de importância de leitura. Aliás, a lista pode ser atualizada frequentemente e sem qualquer aviso. Fique à vontade para sugerir outros títulos…

A máquina do caos – Max Fischer
Excelente esforço de reportagem que mostra como as grandes empresas do Vale do Silício se tornaram as gigantes atuais e como pequenas e grandes decisões comerciais, políticas e de engenharia transformaram as redes sociais numa indústria que alimenta o ódio e o extremismo, destroçando reputações pessoais e esgarçando o tecido social. Texto ágil, bem escrito e com muita documentação de casos. A leitura do capítulo 11 – A ditadura da curtida – dá muitos calafrios porque coloca uma lupa sobre a ascensão da extrema-direita no Brasil e todo o chorume que nos cerca. Compre aqui

Big Tech: ascensão dos dados e a morte da política – Evgeny Morozov
Se você tem um problema, deve haver um app que solucione isso. Mais do que um chamamento deslumbrado do capitalismo, essa frase ajuda a fortalecer a ideia de que a tecnologia pode resolver tudo. Este livro mostra que não e coloca as coisas nos devidos lugares: certas questões precisam ser enfrentadas de outra maneira e fora das grandes corporações de tecnologia.

O filtro invisível – Eli Pariser
O livro foi publicado por aqui há mais de dez anos, e tem uma permanência absurda porque apresenta uma ideia bastante central no tema das redes sociais: os filtro-bolha. Aquela coisa de que as redes sociais acabam nos colocando em bolhas de interesses comuns, nos isolando de pontos de vista diferentes, por exemplo. Isso é feito porque essas redes são projetadas para serem ambientes acolhedores, agradáveis e que nos motivem a ficar cada vez mais imersos neles. Ler este livro hoje e perceber como as coisas se mantêm cada vez piores é assustador.

Colonialismo de dados – João Francisco Cassino e outros
Acabou o tempo em que países eram invadidos, anexados e dominados por outros. Agora, estão todos livres. Peralá! O neoliberalismo é astuto e se transmuta rapidamente. Por que não exercer poder avassalador numa época em que é possível extrair dinheiro e poder dos dados que as pessoas oferecem espontaneamente? Esta coletânea ajuda a pensar assuntos como soberania digital, opacidade de algoritmos, exploração e resistência.

O círculo – Dave Eggers
As maiores empresas do mundo não se contentam mais em dizer o que devemos consumir, em como nos comportar e o que é mais relevante na vida social. Agora, elas querem também substituir outras instituições humanas, como o poder político. Diferente dos outros, este livro é uma obra de ficção. Será?!

A máquina do ódio – Patricia Campos Melo
A premiada jornalista brasileira mescla experiência pessoal e reportagem para mostrar como as redes sociais funcionam como ambiente tóxico de perseguição, agressão e misoginia. Sobram por aqui discursos de ódio, ultra-polarização política e ausência de controle sobre empresas transnacionais que manipulam consciências, instigam sentimentos e manejam comportamentos.

Os engenheiros do caos – Giuliano Da Empoli
Sabe aquele youtuber idiota que se torna o deputado federal mais votado? Sabe a influenciadora digital que, do dia pra noite, se transforma na líder de um movimento social barulhento e influente? Pois é, esta obra ajuda a compreender como funciona o fenômeno de políticos criados e hipertrofiados na internet. Se você pensa que o populismo digital é um problema só nosso e dos EUA, precisa ver o que já aconteceu na Europa…

Dez argumentos para você deletar agora suas redes sociais – Jaron Lanier
Este é um livro escrito por quem tem nojo e pavor da tecnologia, certo? Errado. O autor é uma das maiores referências da realidade virtual e sabe muito bem como funciona a mentalidade de empreendedores, engenheiros, hackers e outros elementos da fauna do Vale do Silício. Ele está lá, no intestino do monstro. De forma clara e com exemplos muito intuitivos, Lanier nos mostra por A + B que precisamos escapar dessas armadilhas. Aproveite e escolha o animal que você prefere ser na internet….

A era do capitalismo de vigilância – Shoshana Zuboff
Livro acadêmico, com farta documentação científica, e que se dedica a elaborar o conceito que dá nome à obra. Para além de explorar dividendos a partir de formas variadas de consumo, os grandes players do mercado exercem uma função de controle social e vigilância constante. Não é uma leitura para iniciantes, mas que pode ser enfrentada por qualquer pessoa que esteja genuinamente interessada em como tecnologia, economia e política caminham juntas e se cruzam.

Eterna vigilância – Edward Snowden
Se o seu barato não é livro acadêmico, vá por essa eletrizante narrativa pessoal do sujeito que contou ao mundo parte do poder monstruoso exercido pelas big techs em conluio com governos politicamente interessados no caos geopolítico. Tá tudo lá: vigilância tecnológica, sistemas e doutrinas de choque…

Tudo sobre tod@s – Sergio Amadeu da Silveira
Há mais de cinco anos, este autor já explicava tim-tim por tim-tim como as redes digitais extraem e processam nossos dados pessoais e como geram perfis de consumo, hábitos culturais, predisposições ideológicas. Se já era assim antes, imagine agora. Leitura fácil e didática.

Manipulados – Brittany Kaiser
Um dos escândalos mais lembrados do abuso de poder das grandes plataformas é o caso da Cambridge Analytica no Facebook. O episódio é contado – não totalmente, sejamos honestos – por uma das pessoas que mais têm autoridade para fazer, afinal, ela estava lá…

A morte da verdade – Michiko Kakutani
O foco da autora é a emergência dessa maluquice que tem muitos nomes: pós-verdade, negacionismo, império dos fatos alternativos e o escambau. Ela se debruça sobre o começo do governo Trump, e todos sabemos que esse sujeito laranja só se tornou presidente por impulso das redes sociais. Ao ler o livro, faça um experimento: substitua a palavra “Trump” por “Bolsonaro” e veja o que acontece.

Algoritmos para viver – Brian Christian e Tom Griffiths
Numa prosa atraente, esses dois cientistas mostram como podemos aprender bastante do comportamento humano a partir da matemática e da programação de computadores. Problemas banais como quando escolher o melhor lugar para estacionar ajudam a pensar em previsibilidade, agendamento e construção coletiva.

Ética para máquinas – José Ignacio Latorre
O livro ainda não foi traduzido do espanhol, e quando for, merecerá diversas notas e apêndices para atualizar a discussão, que não para de crescer nos últimos meses. O que tem a ver com regulação das plataformas? Ora, grande parte do funcionamento dos sistemas delas está apoiada em aprendizagem de máquina, algoritmos preditivos, inteligência artificial e outras temas que este livro trata. Achei que ele demora um pouco para fazer a tal discussão ética que está no título, mas vale conhecer.

Quando o Google encontrou o WikiLeaks  – Julian Assange
O livro tem quase dez anos e quanto mais o tempo passa, mais ficam claras as distâncias entre uma internet que poderia mais aberta, universal e emancipatória e outra, com jardins murados, ideologia californiana, apetite insaciável por startups, extração de dados e abusos econômicos. Assange segue preso e Eric Schmidt, Peter Thiel, Zuckerberg, Musk e outros continuam soltos…

Cypherpunks: liberdade e futuro da internet – Julian Assange e outros
Aliás, já que olhamos um pouco para o retrovisor, vamos voltar algumas casas. Este livro da década passada traz diálogos ainda muito inspiradores sobre como podemos moldar a internet nos terrenos do conhecimento, da informação, da participação política, da vivência das liberdades, da economia e dos direitos…

Algoritmos de destruição em massa – Cathy O’Neil
Se você pensa que os algoritmos são apenas aquelas linhas de comando no computador que te convencem a comprar um produto ou outro, abra sua cabeça. A autora – que é matemática e especialista em métricas – mostra casos reais em que sistemas – alimentados por algoritmos – fazem de tudo para excluir pessoas, segregar camadas da sociedade e aumentar ainda mais a desigualdade. Quando li, era coordenador de um programa de pós-graduação e fiquei semanas noiado pensando em como contribuímos para modelos de produção científica que funcionam como moedores de carne…

Sociedade vigiada – Ladislau Dowbor (org.)
Coletânea de textos que discute como as grandes corporações tecnológicos se aproveitam de engenharia social, brechas tecnológicas, atalhos psicológicos e ausência de leis para invadir a nossa privacidade, atropelar direitos digitais e corroer a democracia. Easter egg: o nome do organizador está errado na capa da edição que tenho aqui. Apesar disso, dois ou três capítulos valem muito.

Datanomics – Paloma Llaneza
Uma visão europeia, e principalmente espanhola, sobre o tema do recolhimento e tratamento de dados pessoais pelas plataformas. Uma visão sobre como o direito de lá olha para a privacidade em toda a parte. O livro também não foi traduzido para o português ainda.

A superindústria do imaginário – Eugenio Bucci
Uma discussão sobre o poder das big techs não apenas pelo viés da comunicação, da política, da hegemonia e da tecnologia, mas também com pinceladas fortes de psicanálise. Sedução, desejo, narcisismo e outras parafernálias libinais nos atravessam quando nos conectamos às redes, ensina o Bucci.

Fake news: como as plataformas enfrentam a desinformação  – Intervozes
Que tal um olhar brasileiro e rigoroso sobre como as gigantes da tecnologia estão combatendo as mentiras, os boatos e as teorias de conspiração? Facebook, Instagram, YouTube, Twitter e WhatsApp são estudados em detalhes e a notícia final não é nada boa. Aliás, você pode baixar o livro de graça aqui.

O mundo do avesso: verdade e política na era digital – Letícia Cesarino
Com todos os olhos da antropologia e todos os pés na cibernética, a autora mergulha nos devaneios que só foram possíveis nos devastadores anos daquele governo, talquei? Obra acadêmica, com camadas profundas de discussão sobre aspectos cognitivos e impactos da política algorítmica no Brasil. O festival de bizarrices que colhemos deveria ser suficiente para frear tudo e regular as plataformas já!

A liberdade de expressão e as novas mídias – José Eduardo Faria (organizador)
Coletânea acadêmica com forte ênfase no direito e que nos permite ter um debate sério sobre fake news, discurso de ódio, direito ao esquecimento e a utopia que as plataformas tentam nos convencer de que existe. Alguns textos envelheceram rapidamente, mas ainda iluminam áreas nubladas da discussão no Brasil.

Algoritmos da opressão – Safiya Umoja Noble
Dizer que o Google ganha dinheiro com racismo pode parecer forte, né? Te desafio a ler o livro e continuar a pensar que se trata de radicalismo.

Racismo algorítmico – Tarcísio Silva
Se a leitura anterior ainda não te convenceu da necessidade de regular as plataformas e exigir delas transparência sobre seus algoritmos e controle rígido sobre os vieses discriminatórios, este livro com olhar genuinamente brasileiro vai cuidar disso.

Liberdade e resistência na economia da atenção – James Williams
Avalie seu comportamento quando estiver conectado em suas redes sociais. Perceba seus hábitos e as oscilações do seu humor. E perceba como o foco, a concentração e atenção são drenadas. Mais um efeito perverso das big techs que não pode ser ignorado.

Para além das máquinas de adorável graça – Rafael Evangelista
Houve um tempo em que o Vale do Silício se guiava também por uma cultura e uma ética hacker. Ler este livro nos leva a pensar como a internet estaria hoje se a ganância, a arrogância e o tecno-solucionismo não tivessem contaminado o DNA do ecossistema de tecnologia mais poderoso da história.

Privacidade é poder – Carissa Véliz
Uma indisfarçável visão otimista sobre como podemos lançar mão da própria privacidade para retomar nossos direitos em tempos de redes sociais. Um desses livros que chegam a ser inspiradores e motivacionais em meio aos escombros em que vivemos.

A ideologia californiana – Richard Barbrook e Andy Cameron
Gente esperta, descolada, poderosa e muito endinheirada. Gente que decide os rumos da humanidade na política, entretenimento e economia. Gente com menos de 30 anos e que desafia a etiqueta usando moletons surrados e cabelos desgrenhados. Não se deixe enganar pelas aparências, é tudo ilusão e faz parte de uma ideologia que vem redefinindo o que chamamos de sucesso, necessidade e relevância no mundo atual. Para fechar esta lista, um texto que é uma patada no livre mercado que alicerça o Vale do Silício. Para desgosto das big techs, baixe de graça aqui.

Privacidade, redes e ética: 5 links

Muito bacana o trabalho que o Ética de Bolso vem fazendo. Ele é um projeto do grupo de pesquisa Ética, Comunicação e Consumo, do programa de pós-graduação da ESPM-SP, muito bem liderado pelo professor Luiz Peres-Neto.

Com textos curtos ou vídeos, eles vêm abordando aspectos bastante delicados e urgentes que estão (res)surgindo com o uso massivo de câmeras, celulares e computadores em tempos de isolamento social. O trabalho deles é muito bom e listo aqui 5 links que precisam ser conferidos:

  1. Do limão, uma limonada: reflexões e práticas sobre ética digital em tempos de confinamento
  2. Está tudo dominado? Ética e privacidade digital em tempos de Zoom e de pandemia
  3. Das salas para as telas de aula: a pandemia expondo questões éticas sobre o ambiente educacional
  4. Reputação nas redes (este é um vídeo)
  5. Privacidade e ética nas redes (outro vídeo)

    Divirta-se!

Mais um jeito de ver o problema dos dados

O economista e professor da USP, Ricardo Abramovay, explica com nitidez cristalina mais um dos muitos problemas da economia baseada em dados pessoais. Ele diz que, no capitalismo convencional, os preços eram uma medida entre oferta e procura, e que oscilavam a partir da tensão entre essas duas forças. Forças que se moviam por diversos fatores.

Agora, com um punhado de empresas que coletam os nossos dados e sabem o que desejamos e quanto podemos pagar por nossos desejos, esse velho esquema sofreu fortes abalos. Afinal, quem oferece agora sabe com muita antecedência a demanda, e tem um controle das regras do mercado que nunca se teve!

Esse é mais um jeito de entender o tamanho do problema da captura, processamento, modulagem e tráfico de nossos dados pessoais!

Abramovay também fala de vigilância, controle social, interferência na democracia e outros temas que atravessam essa questão. Você pode ouvi-lo neste episódio do 451MHz, o podcast da revista QuatroCincoUm.

Deep fake news e rastreamento de olhar: distopias

Dias atrás, um vídeo viralizou nos Estados Unidos mostrando a presidente do Congresso com uma fala arrastada e estranha, mais parecendo estar bêbada. O vídeo não condiz com a verdade porque sua velocidade foi alterada, e o efeito é uma clara manipulação de informação e contexto.

Se antes estávamos preocupados com fake news, nossos problemas aumentaram! Temos agora deep fake news!

O Carlos Affonso explica melhor como isso pode nos afetar e pode funcionar nas eleições do ano que vem. Sim, apertem os cintos.

Ficou preocupado? Ficou preocupada?

Nesta completíssima reportagem, a Vice conta como já estão em uso diversas tecnologias para rastrear os movimentos de nossos olhos, e que isso é o “Santo Graal da publicidade”. Isso já permite que as empresas e agências coletem nossas reações mais íntimas e inconscientes diante de imagens, campanhas e outros estímulos. (Isso é destrinchado de forma bem detalhada pelo Andrew McStay no livro “Privacy and the Media”, que recomendo fortemente a leitura).

E aí, gelou o seu sangue?

5 links fresquinhos sobre ética e privacidade

  • Marcio Moretto Ribeiro fala sobre o WhatsApp, sua criptografia de ponta a ponta e sua capacidade para espalhar desinformação. Para o autor, que é um dos coordenadores do Monitor do Debate Político no Meio Digital, a privacidade não combina com broadcast. Que dizer: temos um problema de foco aqui.
  • The Guardian informa que o Tribunal de Justiça Europeu decidiu preliminarmente que o direito de esquecimento não vale para todo o mundo, mas apenas se aplica aos países que fazem parte da comunidade européia. Parece óbvio, né? Mas a disputa é mais complexa se levarmos em consideração que a internet não respeita fronteiras e que o direito ao esquecimento é entendido por alguns como um desdobramento dos direitos civis, extensivo portanto a todos os seres humanos…
  • Já que é assim, que tal intensificar seus cuidados digitais? Afinal, segurança digital é o oposto de paranóia, como dizem os caras do Autodefesa. No site deles, dicas, manuais, técnicas, tudo em português e descomplicado. Favorite, navegue à vontade, e volte sempre que puder.
  • Mesmo se protegendo, os Cinco Olhos estão de butuca! O Privacy News Online conta em detalhes e em 4 partes como a NSA espiona todo o mundo.
  • Esta é para pesquisadores: a Rede Latino-Americana de Estudos sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade (Lavits) já está recebendo propostas de comunicações para seu 6º simpósio, que acontece em junho em Salvador. Mais detalhes aqui.