o filho eterno

Acabo de ler o romance brasileiro mais premiado do ano, “O filho eterno”, de Cristovão Tezza. Para se ter uma idéia, o livro levou o Jabuti, o Portugal Telecom, o APCA e mais outros prêmios neste ano. Para além dessas credenciais, o livro crava – se alguém tinha alguma dúvida, ela foi dissipada -, crava o nome do seu autor entre os mais importantes na literatura contemporânea.

Em seu lançamento anterior, “O fotógrafo”, Tezza já havia amealhado prêmios importantes, mas com “O filho eterno”, o catarinense radicado em Curitiba lavou a égua. Despontou já um pouco depois da metade do ano como o lançamento de 2008, causando impacto entre críticos e leitores.

Muitos motivos devem ter levado a isso. A qualidade da escrita de Tezza, a pungente história que conta naquelas páginas, a zona porosa que sedimenta entre literatura e realidade… Os críticos, os entendidos podem explicar melhor, eu nem ousaria. Mas eu queria só dividir algumas impressões e sensações que tive ao ler esse belíssimo livro.

o-filho-eternoUma resenhinha de duas linhas diria que “O filho eterno” conta como um escritor reage e reconstrói sua própria vida ao saber que seu tão esperado primeiro filho nasce com Síndrome de Down. Sem pieguice, sem superficialidade e contra qualquer hipocrisia, Tezza constrói um romance-espelho que incomoda pela sinceridade do mal-estar causado, pela vergonha honestamente exposta. Narrado em terceira pessoa, a história esmiuça os sentimentos do jovem escritor que se vê diante de uma espécie de trapaça do destino, um acidente genético que lhe impõe um filho diferente de suas projeções.

Deixa explicar um detalhe: o próprio Tezza tem um filho com trissomia no cromossomo 21, isto é, a anomalia genética dos antigamente chamados “mongolóides”. Esse detalhe do autor contagia inevitavelmente nossa leitura, provocando a pantanosa zona que mescla testemunho e literatura, memória e invenção, relato e construção. E é entre a nossa dúvida e a página seguinte que se avança conhecendo os sentimentos do pai diante do filho cujo mundo tem um diâmetro de dez metros, não mais que isso. O filho preso no próprio mundo, a corrida de cavalos a que o pai se induz para estimular o desenvolvimento do menino, a confusão de sentimentos que demole e reergue o pai todos os dias. “O filho eterno”, na minha leitura, me conta muito mais do pai do que do filho.

Um filho dependente de quase tudo, sem autonomia, ignorante das abstrações mais básicas como as noções de presente, passado e futuro. Um pai espremido entre o desejo de normalidade, a sobrevivência difícil de quem escolhe as letras para fazer os seus passos e a tentativa de compreender a vida e de como ela nos faz ser o que somos.

Por quase duzentas páginas, eu me perguntei se aquele pai amava seu filho. Ficava revirando as linhas na tentativa de algum sentimento que não fosse a compaixão, o remorso, a irritação… mas talvez o ato de escrever seja – mais do que o de ler – uma maneira de entender o que se passa em nossa cabeça, em nosso coração. E talvez, então, Tezza ou o escritor do livro – não importa! – se disponham a escrever para tentar exorcizar as sombras de algum ressentimento e vislumbrar os contornos mais nítidos do que ficou diante daquela experiência. Se foi assim, a viagem é melhor que a chegada ao destino, como sempre.

A afetividade como compreensão do mundo e das coisas, a literatura como a revelação das essências que ajudam a nos constituir, a literatura como resultado do borramento entre a ficção e a realidade… se assim é, assim me ficou. A autoria é uma paternidade. A escritura é uma forma de romper o ciclo de vida e morte. A literatura é uma maneira de eternizar as coisas e as gentes. Ao escrever sobre o filho daquele escritor, Tezza imortaliza aquela filiação, mas eterniza também o pai que é um substrato de sua relação com o menino. O pai aprende a ser pai com o filho. O menino é o pai do homem. Nessa deliberada confusão entre paternidade e literatura, entre o dever de ser pai e o ofício de ser escritor, Cristovão Tezza oferece uma nova dimensão dos retratos paternos que temos na literatura. Kafka pintou o velho Hermann como um déspota maldito em “Cartas ao Pai”; Paul Auster assumiu escrever para não esquecer em “A invenção da solidão”; Carlos Heitor Cony romantiza, idealiza e mitifica um pai a ser idolatrado em “Quase memória”… Cristovão Tezza exibe a fragilidade, a incerteza, a solidão e o aprendizado que é ser pai.

Um comentário em “o filho eterno

  1. Comprei para dar de presente, bem embrulhadinho, e para alguém que não vou ver mais, mas algum dia ainda hei de me encarar esse escrito, nem que seja para dizer “piegas!”.

    Andei lendo suas produções, inclusive “Confiabilidade, credibilidade e reputação: no jornalismo e na blogosfera”, que gostei muito, mas, quanto à forma de escrever, mais especificamente a minha preferência, é de tópicos bem divididos e um maior critério para as palavras que emprega e empresta de outros; parece um excesso de leviandades, ou eu que assimilo muitos termos pela precisão e provável frieza dos dicionários.

    Sinceramente
    O discordioso discordante

    Parabéns pelo blog, ótimo!

Deixar mensagem para Tóin Cancelar resposta