Não tenho nenhum disco do Lobão em casa. Guardo com verdadeiro carinho algumas canções dele na memória, mas ele não é um artista que eu possa chamar de preferido. É mais um personagem pra mim. Como para muita gente.
Apesar dessa não-familiaridade, acabo de devorar as quase 600 páginas de sua autobiografia – Lobão: 50 anos a mil -, que ele lançou com o jornalista Claudio Tognolli. Aliás, taí uma dupla que combina muito, pela fama, pelo humor rasgado, pela inteligência aguda… Mas eu dizia que devorei a biografia do Lobão mesmo não ligando muito pra ele, e você pode se perguntar por que. Bem, foi uma surpresa. Minha mulher me deu o livro no Natal, confessando “ser uma aposta”. Entendi que ela estava oferecendo um prato para que eu provasse e, quem sabe, aprovasse. Entendi também que ela havia comprado o livro com segundas e terceiras intenções, pois se identifica muito mais com o biografado do que eu. Calei. Folheei e comecei a ler o 50 anos a mil ao mesmo tempo em que lia outro livro, mas o fato é que Lobão é um cara bastante espaçoso e foi ocupando todo o meu tempo de leitura nesses dias tórridos de verão em Florianópolis.
Por isso, você deve imaginar que o personagem vale a leitura, que as histórias são boas, enfim, que haja assunto para um catatau que pesa mais de um quilo e que traz esse semblante risonho e convidativo aí ao lado.
Olha, Lobão não é só espaçoso, mas também portador de todos os adjetivos que você já ouviu por aí. É uma metralhadora giratória; tem opinião para tudo; fala demais; é agressivo à toa; briga com todo o mundo; se entupiu de drogas boa parte da vida; é oportunista e meio marqueteiro; foi também meio bandidão, delinquente, desajustado… quer dizer, o cara é encrenca na certa.
Tá, isso tudo. Mas mais.
Na honesta e verborrágica autobiografia, Lobão se mostra ostensivamente afetuoso, deliberadamente franco e atavicamente determinado a colocar uma vida a limpo. Não que ele esteja no final dela. Quem ler, lerá que não.
Contrariando a expectativa de muita gente, Lobão se revela muito autoexigente, um estudioso aplicado e esforçado naquilo que lhe interesse – sobretudo música e literatura. Ele se debruça sobre um instrumento e persegue algo ali que está sempre além de si. Mergulha, se concentra e se joga. É inquieto, contraditório e hiperativo; um lobo correndo em círculos, sem matilha, e com a nítida sensação de estar sendo espreitado por predadores.
Como qualquer biografia que se preza, esta é também um acerto de contas. Com inimigos, com a família, com a imagem que lhe imputam e consigo mesmo. Lobão parece estar cagando para o que o público pensa dele hoje, agora. Está mais preocupado em se fazer entender. Talvez porque também esteja mais devotado a se entender também. Nas últimas 200 páginas, deixa escapar um persistente ressentimento: não estão me compreendendo ainda, não entenderam a música que eu persigo e quero fazer. É natural, é esperado, ainda mais de um lobo solitário como este. Caçado por muita gente por aí.
Mas o livro é bom? É bem escrito?
Sim, é bom. Vale a leitura. Vale a viagem. Lobão é bem-humorado, inteligente, repetitivo em algumas expressões, insistente em se fazer mostrar. É um aparecido! Tem alma de artista, espírito esvoaçante, personalidade forte e sentido espetacularizante, midiático. 50 anos a mil não é lá bem escrito, pois se apoia em um bom punhado de clichês e vícios de linguagem, e porque sua estrutura como narrativa é quadradona, o que surpreende de alguém tão criativo como ele. Mas pouco importa! Já que a força das histórias, a verborragia do biografado dão o tom do samba. O leitor se depara com Lobão falando tudo aquilo, é possível reconhecê-lo em sua oralidade perturbadora, que junta Nietzsche a meia-dúzia de palavrões que aprendemos nos estádios de futebol.
A estrutura do livro também é um pouco errante. Lobão é literal, linear e bastante minucioso de seus primeiros vinte anos. Isso faz com que o leitor encontre o Lobão como o conhecemos só lá pela página 150, quando ele vai tocar com Ritchie e Lulu Santos no Vímana! Por isso, se não tiver o devido saco, pule e vá direto ao ponto. A partir do momento em que desponta para o estrelato, encontramos no final de cada capítulo um clipping do Lobão na Mídia, o que ajuda a entender um pouco o tiroteio a que foi (e vem sendo) submetido. No final, não dá pra entender muito a reprodução de seis entrevistas com alguns personagens que cruzaram a vida do compositor (precisava?) e a publicação de acórdãos do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (era mesmo necessário?). Cortando aqui, cortando ali, o catatau poderia ser mais enxuto, mais delgado… mas não seria Lobão! O estriônico, o hiperbólico, o deboçhado, o tonitruante, o apoplético.
Apesar de todas as trombadas que deu na vida, ele está aí, se reinventando na TV. Enterrou diversos amigos, emplacou hits nacionais, fracassou miseravelmente em outros projetos, casou, descasou, teve filha, teve cabelão, cortou a juba, deixou a barba crescer e passou a usar óculos. Hoje, é um senhor de 53 anos. Um senhor é o caralho! Um lobo é um lobo, mesmo quando seus pelos estão esbranquiçados e os caninos meio falhos.
Som e fúria!
não achei de maneira alguma o começo do livro um começo “dispensável”, não se pode começar a entender algo se não for do começo.
a obra na minha opinião foi muito bem narrada, Cliches são necessarios em qualquer lugar, enfim, não concordo com a sua resenha do livro.
mas é isso aí..
abraços
Sem problemas, Rafael.
O Lobão também me escreveu no Twitter que não concordava. Mas um livro é isso mesmo: ele permite muitas leituras, muita discussão e não cabe em si, ele vai além.
abs e obrigado pela visita.