Tão importante quanto compreender as ideias de alguém é perceber de onde se está falando. O lugar de fala é revelador das condições de produção do discurso a ser analisado, entendido, absorvido. Isso porque não existe discurso sem sujeito que o emita e não há sujeito sem ideologia, sem inconsciente, sem posições.
Por isso, não basta ler “O culto do amador” (Ed. Zahar, 2009) e entender quais as razões que levam o seu autor a atacar de forma tão veemente as novas mídias, as redes sociais e o que se convencionou chamar de Web 2.0. É preciso ainda identificar de onde Andrew Keen desfere seus dardos, e uma leitura minimamente atenta permite isso no trecho que destaco abaixo:
“O mais grave de tudo é que as próprias instituições tradicionais que ajudaram a promover e criar nossas notícias, nossa música, nossa literatura, nossos programas de televisão e nossos filmes estão igualmente sob ataque” (p.13)
Para Keen, blogs, sites de relacionamento, twitter e youtube, entre tantos outros, estão colaborando para soterrar o que se criou de cultura de massa e de mediação nos últimos séculos. Uma turba de desordeiros hipertrofiados pela internet e por um espírito anárquico atentam contra “as nossas redes de TV”, contra “os nossos jornais”, e por aí vai. O discurso não só vai na contramão das falas que tecem uma nova Renascença quanto ilude que emissoras de televisão e jornais sejam realmente “nossos”, que realmente difundam “nossos valores” e que sejam uma reflexo da nossa cultura e idiossincrasia.
Assim, e para encurtar a história, a posição de fala do autor é a que confunde as fronteiras do meu e do seu. De repente, a mídia tradicional se converte na última linha de defesa frente aos ataques de hackers. De repente, a mídia tradicional se torna o último bastião diante dos selvagens e seus mouses ópticos.
Não se deve discordar de tudo o que Andrew Keen escreva, mas alguns argumentos são aterrorizantes, pelo menos para mim. Keen advoga o fato de que estamos recheando a web com lixo diversificado, com opiniões não balizadas, com informações não checadas, com pornografia e bizarrices. Estamos “transformando cultura em cacofonia”, e a democratização “está solapando a verdade, azedando o discurso cívico e depreciando a expertise, a experiência e o talento”. E mais: “está ameaçando o próprio futuro de nossas instituições culturais”. Afinal, “o talento é produzido pelos intermediários” – como o próprio Keen foi no início da web, quando ganhava seu rico dinheirinho por lá.
Os argumentos são conservadores, apocalípticos e, em muitas situações, sofismáticos. O alarme soa a cada virada de página, e o leitor se vê diante de exemplos que só demonstram o quão permissiva, perdulária e corrosiva é esta cultura a que bilhões de pessoas estão mergulhadas nos dias de hoje no mundo. Mas por que ler “O culto do amador” mesmo seu conteúdo sendo não totalmente verdadeiro e sua mensagem tão amedrontadora? Porque é justamente o confronto de argumentos que produz o conhecimento e o discernimento. O fato de discordar de Keen não invalida suas posições. Pode inclusive tornar as convicções do leitor mais fortes e bem sustentadas. Keen deve ser lido sim, até pela coragem que exibe. Afinal, ele dá braçadas vigorosas na contracorrente e desdenha de alguns dos mais influentes nomes da internet no momento: Chris Anderson, Dan Gillmor, Tim Berners-Lee, Tim O’Reilly, Pierre Lévy, Jimmy Wales, Brin & Page, etc…
A questão que mais incomoda não é o tratamento do tema pelo prisma moral. Pelo contrário. É isso o que mais me atraiu na leitura: discutir tecnologia por meio do comportamento e da conduta de pessoas. Sim, tecnologia é também um problema moral, um problema de dilemas éticos, para além de violações de direitos e abertura de processos judiciais. O que mais me incomodou foi a assunção de uma posição tutelar, que desacredita da maturidade, inteligência e sensibilidade das pessoas para discernir caminhos, discutir soluções e estabelecer novos padrões de conduta. Vejam o que Keen escreve lá pelas tantas:
“Minha posição é que somos facilmente seduzidos, corrompidos e desencaminhados. Em outras palavras, precisamos de regras e regulamentos para ajudar a controlar nosso comportamento online, assim como precisamos de leis de trânsito para regular o modo como dirigimos a fim de proteger a todos contra acidentes. (…) O fato é que uma regulação modesta da internet funciona” (p.183)
É aí que mora o perigo: não se acreditar no potencial humano, no debate do coletivo, na nossa capacidade de resolver os próprios problemas. Se não somos capazes, precisamos de tutela, de um poder central e superiormente hierárquico que nos bote de castigo, que nos prive de “nossos privilégios”, que decida por nós. É aí que Keen marca bem o seu território e se distancia do que pensam os que acreditam numa inteligência coletiva, num projeto coletivo de comunicação, numa equação mais colaborativa de vida.
As críticas de Andrew Keen avançam sobre o sistema de compartilhamento de arquivos, sobre a cultura do download, sobre o chamado “jornalismo cidadão”, sobre a enciclopédia virtual editada por não-especialistas, etc… Sim, a educação, a comunicação e o jornalismo vêm sofrendo profundas transformações nesses poucos anos. Os saberes já não são mais o que eram. A informação escorre pelos dedos de todos, e os intermediários precisam redefinir seus papéis. Não só os professores em salas de aula onde em muitos temas os alunos sabem mais que os mestres. Mas no ecossistema informativo, onde os jornalistas não são mais as únicas bases difusoras do noticiário. É preciso se reinventar, chacoalhar o acomodado, permitir-se a instabilidade e a incerteza. Esta é uma era calcada nas incertezas…
Keen não erra ao vestir a fantasia do arauto do apocalipse; apenas se equivoca ao dizer que tem a solução para toda a tribo. Keen não erra ao se assumir um moralista, mas derrapa feio no niilismo que vê nos usuários do sistema meros números de IP. Outras pessoas poderiam ter cometido esse deslize, mas Keen não. Ele presenciou o nascimento da internet no Vale do Silício, se beneficiou com isso, ajudou a difundir uma cultura e sabia muito bem o que estava fazendo. Xingar cada internauta que posta seu vídeo caseiro no YouTube de “amador” não é ofensivo. As fronteiras que separam amadores de profissionais, leigos de especialistas se demarcam a cada momento. Elas não foram simplesmente varridas do planeta: apenas tornaram-se móveis, elásticas e dinâmicas. A terra gira, senhor Keen. Pode-se comprovar isso não olhando pro chão, mas pro céu, onde estão os sonhos e os devires…
O cara é o antagonista total do Tio Lévy e do Tio Anderson. Preciso ler essa obra, porque queria ver o que o cara tem a dizer sobre a seguinte idéia: Esqueça o mundo sem internet, que é um meio, uma ferramenta. As idéias “toscas” e “inúteis” sempre existiram na humanidade. A diferença é que agora essas idéias podem ser propagadas e espalhadas com mais facilidade. É o acesso a informação que mudou, não a informação. Acho que o cara tá criticando o lado errado da equação e servindo de argumentos para as empresas contra o coletivo. Fiquei instigado a ler…
Olá Rogério Christofoletti, achei bastante pertinentes suas considerações. Li o livro ano passado, assim que foi editado no Brasil e, no meu papel de professora, cheguei a promover um debate com profissionais da área, aberto aos estudantes de Comunicação e público interessado. O autor de “O Culto do Amador” levanta questões importantes que devem ser discutidas, porém, a verdadeira comunicação não é tutorial, como você bem colocou. Como idealizou Bretch, pensamento do qual comungo, o dia que produção e recepção dialogarem com as mesmas condições de igualdade, teremos uma comunicação efetiva numa mídia que seja realmente “nossa”, capaz de difundir a cultura do povo e não a cultura da elite. Recomendo a leitura do livro “A Cultura da Mídia”, de Douglas Kellner, para entender melhor este processo de produção de conteúdo. Viva as mídias alternativas, viva o espaço democrático da internet, viva as mídias comunitárias, viva as redes sociais. Há de ter espaço para profissionais e amadores. Um abraço, Cláudia
Acho que fui menos paciente com o Keen na minha resenha:
http://revcom2.portcom.intercom.org.br/index.php/famecos/article/view/5486/4981
Depois de escrevê-la, discutindo o livro com um colega na PUCRS, ele apontou um problema ainda mais candente no raciocínio do Keen: ele desqualifica a cultura do amador como uma corrupção da cultura de massas, como se a cultura de massas não fosse ela mesma corrompida. Lamenta o fim de um sistema pervertido pelo capital como se fosse o melhor dos mundos possíveis e confunde a democracia deliberativa com a indústria cultural. Não são a mesma coisa, porém. Talvez as mudanças trazidas pela Internet sejam mais interessantes para a democracia do que a antiga ordem.
Joel, vale a pena ler. Sei que você vai ficar irritado, se transformar no Cratos e descer a lenha no cara, mas…
Claudia, obrigado pela visita, pelo comentário e pela indicação de livro. Volte mais vezes!
Träsel, você é um impiedoso! hehehe… Obrigado pelo link de sua resenha, muito mais acadêmica, estruturada e melhor que este meu postezinho… abraço
As transformações que estamos vivendo são palco de sérias batalhas, que envolvem um jogo de interesses que não colide exatamente na qualidade da informação ou mesmo o futuro da nossa cultura. Esbarram no mesmo problema de sempre: grana e poder.
Contraditório é pensar num jornalista que fala contra a democracia da informação e luta contra algo que está muito além de suas forças. Ignorar as mudanças é burrice. Penso que discutir uma nova proposta de adaptação, diante deste cenário, é o caminho para manter viva a nossa profissão.