william bonner e o fosso entre academia e mercado

Tempos atrás, a visita de um profissional a uma universidade seria um episódio restrito apenas a quem o presenciasse. Por mais ruidosa que fosse a passagem, alunos e professores discutiriam nos corredores, e o fato seria armazenado na memória de quem o testemunhasse. Bem, eu disse “tempos atrás”. Hoje é diferente, e as muitas possibilidades tecnológicas de compartilhamento de informação, conhecimento e experiência soterram qualquer tentativa de esquecimento voluntário.

Acontecimento recente ajuda a ilustrar essa nossa obsessão por lembrar: no início do mês, o apresentador e editor-chefe do Jornal Nacional William Bonner palestrou na Universidade de Brasília e causou ranger de dentes com as críticas que fez aos cursos de Jornalismo brasileiros. Segundo relatou a professora Zélia Adghirni, publicado originalmente no Observatório da Imprensa, Bonner disse que as escolas de Jornalismo “não servem para formar jornalistas” e que elas “deveriam se preocupar mais com o ensino de Português e História. Para o resto, a universidade serve apenas como experiência de vida”. Conforme conta a professora, o editor-chefe foi categórico em afirmar que “jornalismo se aprende no mercado”, e que nem mesmo técnicas de redação e ética profissional seriam bem oferecidas nesses momentos de formação.

Bonner, contextualiza a professora Zélia, disse tudo isso, após a já esperada pergunta de estudantes acerca do fim da obrigatoriedade do diploma para a área. O auditório da UnB estava lotada, e fora dele, um telão retransmitia a palestra do jornalista. Ainda segundo o relato da professora, Bonner teria dito que “em seis meses, eu pego um estudante e faço dele um editor na Globo”, transformação que poderia fazer de um taxista em jornalista.

Como eu disse, a passagem de Bonner pela UnB – por ocasião da turnê de lançamento de seu livro “Jornal Nacional – Modo de Fazer” – provocou ranger de dentes, que não ficaram apenas nos longos corredores da Universidade de Brasília, mas se espalharam feito rastilho de pólvora na blogosfera e em listas eletrônicas de professores e alunos.

O fosso

Não, eu não estava na palestra de Bonner. Mas confio no relato da professora Zélia, a quem conheço e respeito. E a julgar pelo teor do que foi dito, a passagem foi desastrosa. Não porque eu não concorde com o jornalista, afinal isso pouco interessa. Mas porque declarações como aquelas só fazem aprofundar e alargar um abismo entre academia e mercado, entre universidade e empresas. Aliás, é histórica a existência desse fosso separando duas instâncias que poderiam muito bem dialogar mais. Há muito tempo, assisto a demonstrações mútuas de ojeriza. Há anos, vejo gente na academia torcendo o nariz para o mercado, e gente do mercado bufando diante de professores da área. Não é, portanto, meramente ilustrativo o que digo sobre um fosso. Ele existe, e perdura e, ciclicamente, se expande.

Por contraste geológico, o desprezo manifesto por Bonner pela formação oferecida nas escolas é só a ponta do iceberg de uma relação de estranhamento que não contribui para o avanço do jornalismo profissional nem para os processos formativos de repórteres, editores e redatores. Isto é, ninguém ganha com isso. O mercado não se beneficia com os debates, as pesquisas, as soluções encontradas na academia, e esta se alija do que acontece no mundo competitivo, cruel, real e complexo a que as empresas estão habituadas. O setor produtivo não dialoga com o mundo da reflexão. A massa pensante tapa os ouvidos para a gente que faz. Claro que estou me apegando aos rótulos que se impuseram esses lados da equação, mas não estou muito longe do que influentes e importantes setores pensam acerca de si e de outrem.

O fato é que temos uma zona de atrito entre academia e mercado que – de forma muito prática – interessa a poucos. Interessa a quem se imagina como o centro do mundo, como quem está indisposto ao diálogo e à construção de caminhos.

Saídas?

Não defendo um pacto artificial entre as partes, nem ao menos a capitulação de suas posições. A academia não precisa pensar como o mercado, mas não pode ignorá-lo. Também não é prudente ou recomendável que as empresas, por sua vez, dêem de ombros para o que se pensa e se produz nas escolas. Se os cursos de Jornalismo estão ruins, é preciso encontrar maneiras de aperfeiçoá-los, se os produtos jornalísticos têm qualidade duvidosa, deve-se perseguir parâmetros melhores, refletindo sobre a prática, sobre rotinas produtivas, fluxos informativos, procedimentos operacionais, adoção de novas tecnologias…

São bem-vindas iniciativas como o da Globo Universidade, de aproximar seus quadros profissionais e empresas às escolas. Bem como é oportuna a criação de cátedras específicas, como a Cátedra RBS da UFSC. Repórteres, redatores, produtores, editores precisam transitar pelas universidades, palestrando ou fazendo cursos. Professores e alunos devem fazer visitas técnicas nas empresas, onde se pode colher dados para estudos de caso. Isto é, as saídas para a redução do fosso entre academia e mercado passam incontornavelmente pelo diálogo e pela disposição. Em outros países, a tensão empresas-universidade é menor, e o encaminhamento dos recém-formados aos postos de trabalho é um processo natural, não-traumático.

O manual e Homer

A academia se gaba de querer pensar criticamente as práticas do mercado. Que continue a fazê-lo, mas que também ofereça exemplos práticos de como aperfeiçoar processos e produtos jornalísticos. Isto é, que as práticas laboratoriais sirvam não apenas para reproduzir comodamente o que vem dando certo por aí, mas também simulem os desafios para a busca da experimentação e inovação, e contribuam para habituar os alunos a um ritmo profissional de produção.

O mercado alardeia que recebe jovens profissionais despreparados e que os “salva” na correria do dia-a-dia. Isso não é totalmente verdadeiro, e nos casos em que é, as empresas podem contribuir para que os cursos sejam melhores. Alguns grupos empresariais oferecem cursos internos de formação que muito se assemelham a períodos de treinamento e adestramento. Na ânsia de preparar seus quadros, as empresas formatam, engessam, restringem. Ultimamente, na mesma direção, tem sido lançados livros que atuam como suporte a esses cursos. “Jornalismo Diário”, de Ana Estela de Sousa, é um exemplo disso. O livro – que tem suas qualidades – segue a mesma receita já empregada pela Folha de S.Paulo em seu Manual de Redação: sabemos fazer jornalismo e só nós sabemos. Por isso, sigam as nossas regras e você estará fazendo jornalismo.

Isso não é dito literalmente, mas a leitura do volume permite entrever o quanto se despreza a academia e as linhas que guiam os cursos acadêmicos. Articulado ao programa interno de formação, do qual a autora é responsável, o livro é outra forma do monólogo que aprofunda a fissura entre academia e mercado.

O livro de William Bonner não é endereçado a estudantes de Jornalismo ou a professores. O timbre didático que ele assume do começo ao fim sinaliza que seu público é maior, na direção da audiência do telejornal mesmo. A preocupação com explicações técnicas é tão grande que o leitor pode se constranger pela rasura de alguns trechos. Como se o leitor fosse Homer Simpson. A comparação é minha, mas não é gratuita. Em 2005, Bonner se viu envolvido num incidente que ajudou a macular sua imagem, pois teria comparado o telespectador médio do JN ao personagem do desenho animado. A aproximação foi “denunciada” pelo professor Laurindo Lalo Leal e causou ressentimentos de parte a parte. Bonner alegou ter sido mal interpretado.

No final de “Jornal Nacional – Modo de Fazer”, o autor vai à forra e desenterra o assunto para um acerto de contas com Lalo Leal. Sob o pretexto de tratar da clareza como um valor a ser perseguido no telejornal, Bonner conta a sua versão do incidente e contrapõe, inclusive, declarações de colegas do professor para contestá-lo. Bonner não segura o rancor, e mesmo que em poucas páginas – e como na UnB – alarga ainda mais o fosso entre academia e mercado.

10 comentários em “william bonner e o fosso entre academia e mercado

  1. Deixa eu repetir pra ficar bem gravado: a faculdade não forma jornalistas. Bonner é um jornalista, formado em PP. A maioria dos publicitários do mundo moderno – chamados de assessores de imprensa – saem das faculdades de Jornalismo. Lamento. Jornalista é jornalista. Bacharel e comunicação social pode vir a ser jornalista. Não necessariamente. O mundo real espera, com ansiedade, por vocês. Serão bem-vindos.

  2. muito bom o texto. e o fosso se repete em outras áreas acadêmicas, Direito, Administração, TI, Letras, Economomia, e seria grande a lista… como eu presencio e sei através de vários amigos.

  3. Professor, permita-me discordar em um ponto de seu texto. Entendo ser importante a proximidade entre academia e mercado, teoria e prática. No entanto, como estudante que cursou a Cátedra RBS no curso de Jornalismo da UFSC, minha opinião é de que esse tipo de proximidade do mercado, que passa a se instaurar dentro da grade curricular – ainda que seja em uma disciplina optativa – é muito perigosa. Tal disciplina servia como programa de curiosidades sobre o dia-a-dia de profissionais do grupo RBS e um exemplo de atuação na academia de um grupo monopolista da mídia catarinense. Acho importante que se tenha matérias práticas no curso e que o jornalista que saia da Universidade esteja de alguma forma em sintonia com o que se produz no mercado – sempre com o posicionamento crítico que a academia promove e que, via de regra, o mercado aniquila. Agora, mais importante, é o estudante-jornalista que saia da Universidade com uma formação, com conteúdo que vá além das técnicas que o mercado pode facilmente ensinar. Trata-se de não sairmos como um “apertador de botões”, coisa que matérias como a Cátedra RBS, além das implicações políticas, insistem em querer promover.

  4. Obrigado, Pedro, pelo comentário.

    Obrigado também, Iaiá.

    Não entendi bem o que quis dizer, Everton…

    Valeu, Joel, pelo complemento.

  5. Agradeço as considerações relativas ao meu artigo que, infelizmente, foi tão mal compreendido por muitos leitores do Observatório. Quero também parabenizá-lo pela clareza de seu texto ao abordar questão tão complexa. Ao analisar a questão do fosso entre o mercado e a universidade você aponta para uma saída que venho defendendo há muito tempo dentro da academia. Justamente por ter vivido quase duas décadas nas redações, acho que temos que dialogar. O que não concordo, absolutamente, é o tom de arrogância como as empresas nos tratam, com um ar de superioridade como se vivessemos nas trevas. Por isso gostei do comentário curto e incisivo da professora Sylvia Moretzhon quando ela pergunta : E tem alguem da universidade que vai dar palestra na Globo ?
    Gostei muito de sua página. Vou acompanha com mais assiduidade.

  6. Concordo em partes com Bonner. Também não sou formado em Jornalismo, mas exerço a profissão há 30 anos, vivendo desde a tipografia, passando para a linotipia, fotocomposição…até chegar ao PC e, voilà, à blogosfera do jornalismo digital. Sou do tempo do jornalismo-ideologia, das palavras-de-ordem, Pasquim, Realidade, Repórter, Movimento…bons tempos, fazíamos ‘revoluções’ em mesas de bar..rs.. ditadura de 64, censura, AI-5, Lei de Imprensa… E daí, fui obrigado a ser autodidata, devorando livros, manuais, ouvindo, lendo, comparando e treinando.

    Eu já trabalhei em grandes empresas, em governos. Meu grande trabalho foi no Estadão, em outubro de 1980, ao sugerir a pauta e ser o primeiro repórter da série Detrans, com A Rede que Vende Carta, via Corrupção, culminando com a descoberta do ícone da geração: Miguelzinho do Detran. Nessa época, eu era correspondente do jornal em Araçatuba (SP), dois meses de contratação. Fui para o 6° andar no Limão, em SP. Vi jornalistas formados de longa data inconformados: “Como pode um jovem de 22 anos, sem formação, passar à nossa frente?” E, passei, modéstia à parte. Fui repórter especial cobrindo “As Mordomias do Maluf”.

    Não parei mais. Me orgulho de ter uma carreira profissional excelente. Hoje, numa cidade do interior paulista, Olímpia, trabalho em um semanário e faço um blog (Blog do Concon) informando fatos da cidade, região e do que interessar.

    O jornalismo ‘tá no sangue’ tem de ser aperfeiçoado, é claro, com História, Português, cultura geral, informática etc. O que se discute, creio, é a qualidade dos cursos das faculdades de jornalismo. Conheço gente perto de mim que está até fazendo pós em jornalismo e escreve assessoria com C ou Ç. É o caso: existem grandes juristas e existem os advogados ‘porta de cadeia’. Existem os grandes jornalistas, editores, e existem os que fizeram por opção de vestibular.

    Tudo depende, em primeiro lugar, do talento. Depois, da força de vontade. E, se for o caso, da qualidade do que se ensina. E, por fim, da qualidade daquele que quer aprender. É por isso que o jornalismo como tal está fadado à morte face ao compartilhamento de informações em tempo real.

    Se fosse para começar tudo de novo, repetiria. E sem a faculdade. Sinto muito.

    Abraços,
    Leonardo Concon

  7. O fosso não existe somente entre mercado e academia (com algumas pontes de madeira), mas dentro da própria academia, entre alguns professores/alunos e alunos para alunos.
    Sou adepta da linha teórica; acredito no estudo científico como base crítica para que o estudante, após formado, aplique a técnica sem deixar de lado a reflexão, porém sinto que entre os próprios pares na academia muitas vezes a linha científica é incompreendida. Optei por monografia durante a elaboração de meu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) e muitos acharam perda de tempo. Ainda assim, acredito na formação superior em jornalismo. A faculdade, por si só, não forma o profissional (de qualquer graduação), isso em partes é verdadeiro. Afinal é o estudante que deve ir além, buscar estudos aleatórios, cursos, projetos, muito mais do que só os mandos dos professores. Em contrapartida, alguns mestres continuam crendo que o arroz-com-feijão praticado nas redações, mesmo com os vícios, é que devem ser repassados aos alunos.
    Outro ponto, além do texto muito bem discorrido por sinal, é que as disciplinas teóricas e humanísticas estão perdendo espaço para as técnicas. Psicologia, Sociologia, História, que tanto engrandecem em conhecimento e crítica (não tirando o mérito das disciplinas técnicas) estão sendo suprimidas das grades curriculares de muitos cursos espalhados pelo Brasil. Isso é um retrocesso ao ensino superior em jornalismo.
    Enfim, existe um fosso dentro da própria academia e cabe uma discussão em todas as faculdades para que uma ponte seja construída.
    Parabéns pelo blog e pelo artigo.

  8. Para Willian Bonner
    Assisti numa ediçao do JN, comentario de disparidade entre numero de eleitores na criaçao de municipios. Tenho um levantamento semelhante no RS e resposta esdruxulas do TRE.
    Se hover interesse solicite.
    Heitor

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